28 de mar. de 2011

A AFRICANIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR

POR SELMA MARIA DA SILVA

Há anos, tambores entoam canções de paz, de guerra, alegria, lamento. Há o cantar para vida, há o cantar para morte, mesclam-se ao som do tambor vozes de diferentes tonalidades, somos filhos e filhas diversos, não iguais de uma mesma mãe, e este é o nó, reconhecer a diferença como distinção cultural, filosófica, religiosa, social e política, fruto de um mesmo ventre, entretanto, poucos são aqueles capazes de ouvirem com respeito e admiração, o eco de um passado/presente emaranhado na cultura brasileira.

Precisamos derrubar alguns mitos que insistem em mascarar práticas discriminatórias , por vezes capazes de ações que violam e segregam expressões sociais e culturais diferentes daquela que correspondem a manifestações sociais e culturais do grupo hegemônico, compreendido e percebido como superior tanto por ele próprio quanto por aqueles submetidos ao seu poder de mando, por isso mesmo capaz de ditar a metodologia organizacional e estrutural de um estado "civilizado".

Durante vários anos convencionou-se chamar de cidadão no Brasil aquele que tinham poder de mando, isto é, no período do Brasil colônia correspondia aos nobres, aos representantes das sesmarias, o governador geral, após a independência de Portugal, o Brasil Império transforma-se, tem algo como fogo a identidade de nação, a busca por se constituir autônomo frente às demais nações das Américas e demais continente, novas relações e funções sociais surge, entretanto, o paradigma de quem detêm a função de mando, ainda é presente, portanto, a categoria e função social do escravo permanecia subsistindo no campo das idéias, contaminado pelas características ideológicas e mazelas sociais que lhes são peculiares.

A abolição da escravatura não aboliu ou extirpou do imaginário brasileiro todo um arcabouço ideólogo impregnado pelas teorias racialistas do século XIX, com a proclamação da lei Áurea pouca coisa mudou para os descendentes de escravos, particularmente porque naquele momento histórico o quantitativo de africanos escravizados era de uma expressão pequena, frente ao quantitativo de escravos em atividade nos ciclo do açúcar e o ciclo do ouro.

A idéia ou o projeto de reconhecimento de uma nação mestiça usada muitas vezes como marketing turístico do paraíso tropical, busca tirar de foco as profundas desigualdades sociais vivenciadas cotidianamente por um número muito significativo de brasileiros, pois o Estado formal brasileiro é reconhecido e identificado, mundialmente como um paraíso racial, entretanto, é preciso transformar este reconhecimento formal, em reconhecimento como estrutural, pois não basta reconhecer uma ancestralidade mestiça, faz-se necessário o reconhecer desta perspectiva ideológica, no campo das ações e políticas sociais e culturais, onde poderemos legislar por um tratamento igualitário para as diferentes etnias gestoras da identidade brasileira.

O ano de 2003 deverá ser referido, num futuro próximo, como um marco institucional da vitória, da persistente luta política antirracista de diversas instituições e diferentes cidadãos no combate as práticas educacionais racistas, discriminatórias e excludentes. Portanto, o ano de 2003, quando houve o sancionar da lei 10. 396/03, que tornou obrigatória a inclusão "no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afrobrasileira", a lei 10639/03 nada mais é do que o reconhecimento institucional, de fatos e ações culturais já vivenciados, porém invisibilizados pelo racismo "cordial" praticado em nosso país, portanto, urge abolir e desmascarar práticas e posturas camufladas sob o verniz da denominada democracia racial, na qual as relações entre os diferentes grupos étnicos não são igualitárias.

A existência de diferentes etnias como elementos constituintes de um ideário de nação, põe em pauta a discussão sobre os aspectos estruturais e conceituais como a religiosidade, valores filosóficos e culturais, pois o que ser cidadão num estado-nação onde as particularidades e especificidades étnicas de determinados grupos étnicos são lidas como exóticas e não civilizadas, dentre eles estão os africanos, índios e seus descendentes?

Há no Brasil do século XXI práticas culturais que insistem em tratar de forma desigual as expressões de culturais diferentes daquela considerada "civilizada". Assim, reconhecer cidadania e ser cidadão, por muito tempo foi negar particularidades e especificidades étnicas e culturais. O referencial padrão de civilizado restringia-se a um único grupo étnico/cultural, cabendo inclusive a este grupo primado de um gênero, portanto, ser cidadão significava ser branco, homem e ter ascendência européia. Como africanos, afrosdescendentes e índios não compunham este grupo, não eram cidadãos. Estas questões postas sobre o é que ser cidadão e quem é cidadão no Brasil, estão dentre outras questões suscitadas pela Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Nacional alterada pelas leis: 10. 639/03 e 11. 645/08.

As questões conjunturais e as demandas estruturais suscitadas pelas leis em destaque, particularmente no aspecto que evidencia a presença de elementos culturais de matriz africana, vêm enfrentando resistências no cenário educacional nacional, sob argumentos como falta de material didático e a inconsistência de um referencial teórica e metodologia para tratar a temática "História e Cultura Afrobrasileira", podemos afirmar que estes argumentos fazem a leitura a partir de foco contaminado pela cruel estratégia de apagar da cultura brasileira elementos culturais que destoem daquilo que convencionou-se chamar de cultura superior, a mesma que induz a leitura de relações de subalternização entre diferentes étnicas, conduzindo o processo de leitura para invisibização dos elementos étnicos de matriz africana, processo de decodificação que corrobora práticas de preconceito,exclusão e discriminação étnico/cultural.

As expressões e fazeres de matriz africana não estão relegados ao lugar subalterno e nem tampouco ao patamar superior. As expressões e fazeres de matriz africana estão na entranhas da nação brasileira. Negá-las é uma postura esquizofrênica, pois os elementos culturais de matriz africana permeiam e entremeiam as estruturas históricas, sociais e política da sociedade brasileira.

O incomodo provocado em alguns setores sociais brasileiros, em especial, o sistema educacional brasileiro põe em evidência o conceito de democracia mestiça, orgulhosa do seu processo de branqueamento ideológico em contraponto com o processo de africanização de suas instituições civis, religiosas e públicas, que ocorre de forma sistemática há vários anos. Reconhecer a presença de elementos culturais de matriz africana é desvelar uma história política de mais trezentos anos de Estado escravocrata. Os africanos trouxeram para o Brasil mais do que pernas e braços para trabalho braçal, trouxeram técnicas de plantio de cana de açúcar, conhecimento tecnológico daqueles dominavam ferramentas e possuíam habilidade no processo de extração do ouro, além dos aspectos, anteriormente mencionado, acreditamos que em função de uma certa semelhança entre alguns espaços geográficos, o clima houve a possibilidade do estabelecimento de algumas analogias, contribuindo assim, para o estreitar de laços e de conhecimento sobre o uso ervas como medicamentos e em rituais religiosos.

A sociedade brasileira ao reconhecer a presença cotidiana e intima de elementos africanos, traz para o cenário educacional sua condição de sociedade de várias feições, pois oriunda de diferentes matrizes culturais e ao perceber estas diferenças, como um vetor que num mesmo momento nos distingue internamente e externamente, nos aproxima em direção ao estabelecimento de relações sociais, verdadeiramente equânimes. Um espaço/tempo no qual diferença não é sinônimo de desigualdade.

O sistema educacional hoje está obrigado a reconhecer, no interior de suas unidades escolares, a presença de particularidades étnicas com equidade, pois a diferença e desigualdade são categorias sociais antagônicas. O processo de obrigatoriedade tem contribuído para fomentar o debate de forma significava mesmo com os incômodos e insatisfações causada, em parcela da população brasileira. A nação brasileira tem uma dívida histórica como os povos africanos, e, a lei 10. 639/03 ao alterar a LDB( Lei de Diretrizes e Bases da Educação) , cria um instrumento jurídico imprescindível em uma sociedade democrática, onde os diferentes atores sociais possam viver em plenitude o exercício de ser cidadão.

SELMA MARIA DA SILVA
Mestre em Educação pela UERJ
Professora da SEDUC - Colégio João Alfredo
Professora da FAETEC - Divisão de Inclusão - NEERA
Membro do CEDINE/ RJ

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