28 de mar. de 2011

O RIO DE JANEIRO E A CULTURA DO MEDO

A cidade “ maravilhosa” tem também aspectos “ negativos” que facilitam as subjetividades entre diversos grupos.

POR CAIO FLAVIUS

Atemorizado, um homem, de uns 50 anos, desvia de um despacho numa encruzilhada, na Lapa.
Jovens de bermuda e peitos desnudos, usando crack, na Avenida Augusto Severo, na Glória, assustam transeuntes que decidem seguir por outro caminho, em direção ao Catete;
Mendigos nas ruas Washington Luiz e Tenente Possolo, no Centro do Rio, fazem tremer o casal de namorados, que acelera o passo ao constatarem o cenário decadente.
Na madrugada, os motoristas tendem a não respeitarem os sinais de transito receosos de assalto.
Jovens da zona sul se perdem durante um show de rock na Barra da Tijuca e acabam chegando no subúrbio cortado pelos trilhos da antiga Central do Brasil. Eles ficam desconfortáveis por encontrarem um cenário urbano antagônico ao local onde vivem.
Há algum tempo atrás, o governador mandara cercar as favelas com receio que estas pudessem se expandir para as áreas mais ricas.
Ao mesmo tempo, são comuns recusas de celebridades em fazerem o teste do bafômetro quando barrados nas ruas da zona sul durante as operações de “choque de ordem”..
Em 1808, os integrantes da corte portuguesa que fugiram dos ingleses, e se estabeleceram na cidade, “estranham” a população carioca e temeram ser atacados. Por isso, em 1809, o colonialismo português criou a Guarda Real de Polícia, o embrião do nascimento da Polícia Militar brasileira.
Podemos ainda enumerar mais comportamentos ou reações dos metropolitanos em relação às diferentes faces exibidas pelas cidades. Mas não queremos ir tão longe. Nestes comportamentos citados parece que uma palavra se destaca: medo.
Todos sentem medo do outro ou da estrutura urbana que se apresenta aos seus olhares.
Nada demais, pois, no Rio de Janeiro, convivemos historicamente com uma cultura clássica de medo.
Um estudo divulgado recentemente pelo IBGE (“ Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil”, feito a partir dos dados da PNAD 2009) mostra que 45% dos brasileiros consideram a cidade insegura.
O Rio de Janeiro, depois de Belém, é a cidade mais insegura do Brasil para os cariocas, de acordo com o estudo. Existem no país, segundo a pesquisa, 76.9 milhões de brasileiros que se sentem inseguros.
Este número é assustador.
Esta insegurança ocorre devido a diversos motivos, tais como: o noticiário midiático sobre as tragédias que diluem as certezas quanto a um futuro tranqüilo; o crescimento da criminalidade no país e no mundo; a incapacidade de o estado dar “segurança pública” aos seus cidadãos; a presença sem alteração das zonas arruinadas ou decadentes da metrópole em bairros pobres; as próprias subjetividades arroladas pelos cidadãos que criam “obstáculos”, “barreiras “ e “idealizações” para uma vida com mais segurança; a incerteza quanto a retornar vivo para casa depois de um mergulho na vida noturna; a presença dos “ feios”, gente diferente/antagônica, nos espaços urbanos; o crescimento da rivalidade entre grupos/tribos/classes; a disputa pelas melhores condições de vida nas cidades, e assim por diante.
Segundo lugar nas pesquisas de índice de insegurança nas cidades, o Rio de Janeiro infelizmente faz jus a fama, digamos assim. Isto porque, nunca foi a “cidade maravilhosa” tantas vezes apregoada. Muito pelo contrário. A cidade, tradicionalmente, sempre teve uma ordem pública conturbada e engendrou um acordo de classes para sobrevivência delas mesmas neste cenário belo/conflituoso.
Neste sentido, o carioca, ao contrário de outros estados, sempre desenvolveu uma cultura de sobrevivência, isto é, a criação de mecanismos culturais para proteger da violência, da desordem e da instabilidade das ruas.
Não é a toa que todos cariocas identificam imediatamente o que é um tiroteio ou estouro de uma bomba de brincadeira, e logo buscam se abrigar/proteger. Ele decodifica rápido a sensação de insegurança, pois, convive com isso há muito tempo.
Este fato, por conseguinte, não o impediu que produzisse e executasse sua vida cultural e social, e não ficasse dependente desta ordem conturbada das ruas. Ao contrário. Em alguns casos, o morador do Rio de Janeiro fez e faz profundas reflexões sobre eles mesmos através de obras no cinema, nas artes plásticas, no teatro, na música etc. Nos anos 1990/2000, os rappers e novos roqueiros introduzem em suas músicas uma cidade dura, segregada e excludente.
Hoje, uma das grandes sensações de insegurança na cidade é a bala perdida. Mesmo nesta operação considerada muito técnica feita por policiais estaduais e federais, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, em fins de novembro passado, uma garotinha de 14 anos morreu vítima de uma bala perdida quando em casa navegava pela internet em seu computador.
Embora, na maioria dos casos, restrita aos bairros proletários, não há um morador de zona sul que não tema a bala perdida. Afinal de contas, nos anos 1990, uma delas matou um ator famoso quando este dormia em sua casa em Ipanema, próxima das favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho.
Diríamos que, no Rio de Janeiro, há um medo secular: a descida dos favelados dos morros para tomar a cidade. Esse temor, neste caso, segundo historiadores, provoca estratégias de controle social extremado das comunidades pobres, e é alimento para o surgimento de milícias e dos grupos de extermínio.
Na contemporaneidade, em várias ocasiões, as Forças Armadas foram chamadas para conter a criminalidade na cidade no Rio, sendo as mais famosas as “Operações Rio I e II”, em meados anos 1990.
Em 1849, a população negra na cidade do Rio de Janeiro superava a de brancos devido à busca constante de braços africanos para dar conta das atividades rurais e urbanas. Quem visitava o Rio tinha impressão que estava na África como as aquarelas de Debret querem nos assegurar.
Assim, o temor de uma rebelião escrava no Rio de Janeiro abalou a mente das elites brasileiras. Afinal, em algumas áreas, hoje, por exemplo, convivíamos (ou convivemos ainda?) com o fato de narcotráfico sempre ordenar o fechamento da zona comercial em respeito ao líder do bando morto geralmente pela polícia ou pela guerra entre bandidos pelo controle dos pontos de venda de drogas.
Como o Rio de Janeiro é também uma cidade dionisíaca, então o perigo/aventura faz parte do jogo de viver nas ruas e becos, além do mais, com o agravante que, aqui, os bairros populares e ricos costumam a serem próximos ou vizinhos.
Trata-se, assim, de uma insuportável leveza de viver “o medo” e o “ outro”.

A maçonaria entra na luta pela liberdade do escravo ?

Coube a José Bonifácio a produção do primeiro manifesto de peso contra a escravidão quando ele assumiu a direção da maior entidade maçônica brasileira.

POR CARLOS NOBRE

Depois de violentas lutas internas, José Bonifácio de Andrada e Silva, que, na história oficial passou a figurar nos livros didáticos de História do Brasil como o “Patriarca da Independência”, assumiu em 17 de junho de 1823, a liderança máxima ( Grão-Mestre) do Grande Oriente do Brasil (GOB), uma espécie de entidade federativa de comando de todas as lojas maçônicas espalhadas por todos os estados do Brasil.

Filho de rica família paulistana e, na época, um cientista respeitado na Europa pelos seus altos conhecimentos de mineralogia e geologia, José Bonifácio, ainda jovem, foi estudar em Lisboa. Ele passara quase 30 anos na Europa, tornando-se, na verdade, num “civilizado de alto nível” em relação aos “caboclos” da terra onde nascera. Estes “caboclos” mal sabiam da existência de “civilizações superiores” do outro do atlântico.

Bonifácio, naquele momento, como líder da nascente maçonaria brasileira, produziu um documento que influenciou, dali por diante, os ideólogos do abolicionismo até em 1888, quando decretado o fim do trabalho escravo, depois mais de 70 anos de debates sobre o fim da escravidão no país. dois meses depois de Bonifácio ter assumido o comando do Grande Oriente do Brasil.

O documento, neste sentido, era um projeto de lei impondo o fim do tráfico de escravos no país. Seu projeto libertador iria ser apresentado à Assembléia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil. No entanto, a Assembléia foi dissolvida pelo imperador Dom Pedro I, em 12 de novembro de 1823, dois meses depois de Bonifácio ter assumido o comando do Grande Oriente do Brasil.
Na época, junto com outros deputados, José Bonifácio foi preso e deportado. A ordem de deportação partira de outro próprio, D. Pedro I, também maçom. No entanto, o gesto autoritário de Dom Pedro I não conseguiu impedir que o documento vazasse para fora do país. Uma cópia desta representação ficara com um amigo de confiança de Bonifácio. O “Patriarca da Independência” permitiu assim que documento circulasse entre os grupos contrários ao autoritarismo de D. Pedro I no Brasil e no exterior.

O projeto de lei, então, foi publicado pela primeira vez, em Paris, em 1825, e nele, José Bonifácio mostrara a necessidade de o estado imperial abolir o tráfico negreiro, de melhorar a vida dos escravos e promover sua gradual emancipação.

Este documento é fundamental para se entender aquela sociedade baseada apenas no trabalho escravo – e que fazia todos os esforços para que a escravidão se perpetuasse eternamente.

Vamos, neste sentido, fazer algumas análises de alguns trechos pinçados deste importante documento, de autoria do então líder máximo desta instituição, que, naquela época, se tornara crucial para a transição do colonialismo para a modernidade na vida brasileira.

Além disso, José Bonifácio era o homem de estreitas ligações com as elites portuguesa e brasileira. Por isto, sabia exatamente o que se passava na alma e coração destas elites.

Escreve José Bonifácio:

Mas como poderá uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos ? Comecemos pois esta grande obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos ser também penitentes: devemos mostrar a face de Deus e dos outros homens que nos arrependemos, e tudo o que nesta parte temos obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes que não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que fomentamos entre os selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão de nossos navios, mais apinhados que fardos e fazenda: é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território. É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma Nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes”.

Esta é uma passagem muito elucidativa para nossos objetivos analíticos. Em primeiro lugar, Bonifácio, uma das mais altas inteligências da elite brasileira do século XIX, questiona a instituição de uma Constituição num país de escravos. Uma Constituição que fala dos direitos de homens livres e esquecia completamente a população escrava. Na visão de Bonifácio, esta Constituição é fraudulenta, pois, não reflete as aspirações e interesses da maioria da população.

Todavia, para Bonifácio, está é uma questão estrutural da colônia que se libertava recentemente ( estamos, pelo documento, em 1823) do jugo português: o que fazer com aquela escravaria, que eram homens, e que, portanto, também tinham direitos ? Mas que direitos ? Somente o serem escravos ?

Ao que parece, Bonifácio, um “europeu em terras selvagens”, não comungava com aquelas ideologias vindas da elite brasileira, ou seja, ele achava um horror a escravidão num país que se pretendia liberal naquele momento.

Na verdade, ele, sem querer, talvez começasse ali a discussão do processo abolicionista por via da influência maçônica, ou seja, a instituição maçônica, através de seu grande líder, com aquele projeto de lei, incorporava o pensamento moderno. Neste modelo, não fazia sentido o Brasil continuar a ser uma sociedade escravocrata, quando o ideal liberal varria a Europa.

Se este pensamento fosse somente de Bonifácio, mesmo assim, o fato ganha dimensão devido ao cargo que ele ocupava naquele momento na maçonaria brasileira. Ele não era um simples maçom abolicionista e utópico, mas o líder da maçonaria brasileira, isto é, o chefe de todos os maçons, propondo uma discussão sobre a liberdade dos escravos, fazendo ilações muito percucientes daquele momento histórico, ou seja, pedindo que elite cortasse na própria carne.

Podemos dizer através deste projeto de Bonifácio, que a maçonaria brasileira tomou uma posição clara em relação ao escravismo brasileiro ?

Acreditamos que ele, Bonifacio, como Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil Bonifácio, até representasse os interesses dos todos os maçons naquele momento. No entanto, pensamos que ele produziu aquela representação como se fosse uma liderança política individual, sem se referir explicitamente a sua condição de Grão-Mestre, sem que a instituição estivesse tomando uma posição como um todo.

Em outras palavras: ele não pôs a maçonaria como instituição produtora daquele documento, embora tivesse status e poder para tal. Seu apelo tanto podia atingir maçons como os não maçons do parlamento. Na verdade, ele inaugurou uma tendência que duraria até 1888: maçons e lojas, individualmente, se posicionando contra a escravidão e propondo a libertação completa dos escravos.

Mais à frente, vamos ver que a luta contra a abolição feita por algumas lojas maçônicas espalhadas pelo Brasil se configurou também como uma luta interna contra os próprios maçons. Isto porque, durante o processo de criação ordem maçônica no Brasil, os primeiros maçons contraditoriamente eram também donos de escravos. Só mais à frente, a classe média urbana, sem posse de grande escravaria, já em fins do século XIX, se torna majoritária nos quadros maçônicos e imprime dentro da instituição modelos de comportamento em busca de modernização da sociedade brasileira, até por via autoritária.

Neste documento ao qual estamos ora analisando, Bonifácio faz mais ilações: pede fim urgente do tráfico de escravos, para ele, uma instituição bárbara. Faz uma descrição deste processo e expõe as ilações para a construção de uma futura nação democrática.

Ele não tem dúvida que a sociedade brasileira está cometendo um crime contra a humanidade através do sistema escravista montado pelos colonizadores e que continua operado pelos brasileiros até com a cumplicidade dos africanos.
Os colonizadores que ele conhecia bem, pois, além de estudar em Lisboa, Bonifácio também foi beneficiado pelos portugueses por ser uma inteligência excepcional, com altos cargos em Lisboa.

Neste momento, também Bonifácio – como um dos destacados intelectuais do país naquele momento - imprime a principal ideologia liberal brasileira em relação à questão escrava. Ou seja: a libertação dos escravos, escreve ele, deve ser feita de modo gradual para não prejudicar o sistema econômico, que é os pés e mãos dos senhores de engenho e das futuras plantações de café do Vale do Paraíba.

Vamos conferir:
Torno a dizer porém que eu não desejo ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre primeiramente fazê-los dignos da liberdade; cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos. Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos e ganharão muito pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absolve o uso da escravatura: livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania; de inimigos seus e do estado; que hoje não têm pátria, e que podem vir a ser nossos irmãos, e nossos compatriotas”.

Daí, então, que, ao longo da luta abolicionista, de 1823 em diante, com a representação de Bonifácio, assistimos a instituição persistente de leis gradualistas pelo parlamento. Tais como: Lei dos Sexagenários, Lei do Ventre Livre, Lei proibindo a venda de escravos em praças públicas, Lei de alforria para escravos de bom comportamento. São leis que não encaram de frente à libertação escrava, mas tenta adiá-la ao máximo, e interessante, todas propostas por maçons.

Lembremos a respeito que, em 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, naquele momento, restava muito poucos escravos formais no Brasil. Existiam mais ou menos 10% de escravos. Isto porque a maioria conquistara a liberdade graças à libertação voluntária deles feita pelos seus senhores; pela compra da própria alforria pelo escravo ou porque os escravos estavam libertos em quilombos espalhados pelo Brasil. O país, agora liberto de Portugal, tornara-se, então, a última nação das Américas a libertar os escravos, vindo atrás de Cuba, que libertou-os em 1884.

Este fato, mais adiante, produzirá repercussões profundas na economia, nas relações sociais entre os grupos étnicos brasileiros e nas formas de distribuição de poder entre as classes sociais, implicando, desde já, na prévia condição de vulnerabilidade do negro nas disputas de poder na sociedade brasileira.

Mas o líder da nascente maçonaria brasileira continua seu discurso implacável contra a sociedade do atraso.

Escreve ele:

Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão ? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos se sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume e a voz da cobiça que vêem homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre mão e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia; diz que é um ato de caridade trazer escravos da África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos Régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do Evangelho, que todo cristão deve promover e espalhar; diz que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro doce, fértil e ameno; diz por fim, que devendo os criminosos e prisioneiros de guerra serem mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes é um favor que se lhes faz, conservara vida, ainda que seja em cativeiro”.


Em primeiro lugar, neste trecho, o primeiro Grão-Mestre da Maçonaria brasileira investe contra a idéia formada segundo a qual o escravo é uma coisa, um objeto, uma máquina, a serviço dos escravocratas. Mostra, assim, que há um terrível engano das elites escravistas que aderem a este modelo econômico baseada na mão-de-obra escrava.

Sim, o escravo é um homem igual a outros, só que reduzido a uma condição brutal de dominação. Neste caso, não é um igual, em função da condição política deste momento. Muitos historiadores já se referiram a este aspecto, ou seja, da “coisificação” do escravo na sociedade brasileira, mostrando, por conseguinte, suas conseqüências funestas.

Mesmo hoje, esta ideologia ainda perpassa a mente de muitos integrantes dos grupos dominantes. Basta analisar, neste sentido, alguns ditados populares segundo os quais o negro ainda é visto como uma etnia inferior. “ Parece gente”, esta é uma expressão usada para designar os descendentes de escravos que estão se comportando simbolicamente como os brancos “civilizados”.

Ou seja: a identidade étnica só é reconhecida (negativamente ainda) quando o afrodescendente usa símbolos utilizados pela elite branca. Esse modelo de reclassificação negra é recorrente em diversas regiões do país, embora, venha, aos poucos sendo aposentado em função das transformações políticas de direitos ensejadas pelos movimentos sociais negros.

Bonifácio lista ainda os argumentos favoráveis à prática do tráfico manuseados pelos traficantes de escravos para impor uma prática desumana, ou seja, para os escravocratas o sistema baseado na mão-de-obra africana se justificava porque a ação dos traficantes brasileiros/internacionais era, na verdade: 1. um ato de caridade 2. servia para iluminar os cativos com a luz do evangelho; 3. trazê-los para um país de clima doce e agradável era um grande benefício 4. era também uma forma de livrá-los da morte por serem os negros, em geral, prisioneiros de guerra.

Estes argumentos são hostilizados veementemente por Bonifácio na apresentação de seu projeto de lei. Mais do que isso, ele pergunta por que continuam a ser escravos os filhos dos africanos. Ou seja, ele detecta uma ilegalidade gritante nos fétidos negócios da escravidão brasileira, pois, os traficantes não compraram os futuros filhos dos escravos, pois estes nem ainda tinham nascidos. Mas quando nasceram, já estavam sob grilhões.

Veja como Bonifácio argumenta em relação a este fato:

E porque continuaram e continuam a ser escravos os filhos desses africanos? Cometeram eles crimes ? Foram apanhados em guerra ? Mudaram de clima mau para outro melhor ? Saíram das trevas do paganismo para a luz do Evangelho ?”

Importante destacar, neste contexto, é a análise que ele faz da sociedade brasileira daquele momento, mostrando uma coragem poucas vezes vistas em homens originados nas elites brasileiras. Além disso, parecia de certo modo um “estranho” naquela sociedade por ter construído uma brilhante vida profissional em países do velho continente por mais de 30 anos.

Escreve ele:

A nossa Religião é pela mor parte um sistema de superstições e de abusos anti-sociais; o nosso Clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio, e pela agricultura, e para firmar, muitas vezes, das desgraçadas escravas um Harém turco. As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a Virtude e a religião. Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudos-estadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos Eclesiásticos; os nossos Magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela mor parte, venais, que só empunham a vara da justiça, para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à sua cobiça, ou melhorar a sua sorte”.
E mais, na sua visão implacável do poder colonial brasileiro:

(...) O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso ? A escravidão, Senhores, a escravidão, porque o homem que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si”.

Este painel devastador das elites dirigentes do século XIX foi escrito há 185 anos, mas sua atualidade ultrapassa suas propostas, em virtude destas constatações terem até se cristalizado no país. Se formos contrapor estas declarações com a situação das elites de hoje, que coincidências poderíamos obter ?

Nestas apreciações, Bonifácio aponta ainda para a necessidade da modernização econômica do Brasil, pois, na visão dele, na época, a escravidão era uma armadilha de atraso do Brasil frente às demais potências. Segundo ele, “ nenhum país necessita de braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado”.

Bonifácio analisa impiedosamente contradições do sistema escravocrata brasileiro mostrando que em muitos países da época - com igual potência ao Brasil – a economia se desenvolveu sem precisar utilizar braços escravos, somente com o trabalho livre dos cidadãos.

Para ele, a escravidão é um absurdo, uma falta de senso, a ignorância total das elites agrárias, pois, o Brasil que ele vê, na época, tem condições, pelo clima e pela riqueza da terra, se tornar uma potência como nação, sem recorrer ao instituto da escravidão, uma fábrica de moer gente e cuja lógica de exploração comercial era a mais degradante e antiquada possível.

Vejamos, neste sentido, algumas análises que ele faz do sistema escravista brasileiro daquele momento:

(...) a introdução de novos Africanos não aumenta a nossa população, e só serve de obstar a nossa indústria. Para provar a primeira tese bastará ver com atenção o censo de cinco ou seis anos passados, e ver-se-á que apesar de entrarem no Brasil, como já disse, perto de quarenta mil escravos anualmente, o aumento desta classe é ou nulo, ou de mui pouco monta: quase tudo morre ou de miséria, ou de desesperação, e todavia custaram imensos cabedais, que se perderam para sempre, e que nem sequer pagaram o juro do dinheiro empregado”.

Eis, aqui, uma informação terrível, isto é, o sistema colonial era realmente uma máquina de moer gente africana sem que os argumentos de sustentação para tal barbárie tivesse contrapontos como asseverava sempre o saudoso antropólogo Darcy Ribeiro. Ou seja, este sistema economicamente era nulo, pois mantinha os seus dirigentes no atraso industrial, pois, estes, mal percebiam a lógica de funcionamento do sistema colonial mantido por Portugal. Esta é uma das teses de Florestan Fernandes no livro “ A revolução burguesa no Brasil”, onde ele mostrou o grau elevado de atraso de nossas elites dirigentes Mais do que isso: devido à ignorância do próprio senhor de engenho, não havia proteção e cuidado com suas “máquinas” ( os escravos), ou seja, com seus meios de produção. Em alguns estados norte-americanos, alguns historiadores constataram que o escravo era bem cuidado, pois, era o meio de produção do sistema escravista.

Em vista disso, como dissera o próprio Bonifácio, o investimento agrícola era nulo no Brasil, pois, o operador-proprietário desse sistema desconhecia de que forma podia ampliar a produtividade de suas engrenagens.

Vejamos, por conseguinte, outras conclusões de Bonifácio em relação ao sistema que operava no Brasil desde dos primeiros anos do século XVI:

Para provar a segunda tese que a escravatura deve obstar a nossa indústria, basta lembrar que os senhores, que possuem escravos, vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se vêem precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura”.

Mais ainda:

Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares”.

Ou de outra forma:

A lavoura do Brasil, feita por escravos boçais e preguiçosos, não dá lucros, com que homens ignorantes e fanáticos se iludem. Se calculamos o custo de aquisição do terreno, os capitais empregados nos escravos que devem cultivar, o valor dos instrumentos rurais com que devem trabalhar cada um destes escravos, sustento e vestuário, moléstias reais e afetadas, e seu curativo, as mortes numerosas, filhas de mau tratamento e da desesperação, as Repetidas fugidas aos matos, e quilombos, claro que o lucro da lavoura deve ser muito pequeno no Brasil, ainda apesar da prodigiosa fertilidade”.

Mais uma vez, o sistema escravocrata brasileiro é esmurrado sem piedade pelo líder da Maçonaria brasileira. Dessa vez, ele mostra que o sistema colonial deixava o produtor apenas defronte para o muro, que o impede de ver às novas formas produtivas, que podem dar um novo embasamento ao trabalho e a produção. E que as soluções tecnológicas apresentadas pelo escravismo para melhorar e ampliar o sistema de exploração da terra eram ridículas, e que este sistema desconhecia por completo saber aproveitar a fertilidade da terra brasileira. Aliás, naquele momento, Bonifácio já condenava as queimadas, a exploração desenfreada dos recursos naturais e a incapacidade do empreendedor brasileiro de se aproximar do ecossistema de forma criativa e respeitosa.

Não contente, Bonifácio imprime mais constatações que mexem profundamente na forma econômica que a nação optou para se destacar no cenário político-econômico. Ou seja, com seus conhecimentos europeus, Bonifácio mostrou a fragilidade do sistema escravagista e de seu operador numa conjuntura onde os países europeus ingressavam no capitalismo e nós continuávamos insistindo na mão-de-obra escrava.

Ele acrescenta:

Um senhor de terras é de fato pobríssimo, se pela sua ignorância ou desmazelo são sabe tirar proveito da fertilidade de sua terra, e dos braços que nela emprega”.

Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de construção civil e náutica não seriam destruídas pelo machado assassino do negro, e pelas chamas devastadoras da ignorância”.

(...) Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. O vós iludais, Senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a cousa na frase dos Jurisconsultos ?”

Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura Africana; mas com isto não está tudo feito: é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação”.

Enfim, a maçonaria brasileira nasceu polemizando sobre a construção de uma nação democrática, e pretendendo incorporar o elemento africano como integrante da sociedade brasileira, apesar das derrapadas conceituais sobre o comportamento e papel do escravo nesta sociedade. Nada como um grande tema para fazer a discussão se tornar pública durante mais de 60 anos até a instituição da Lei Áurea em 1888, isto é, há 120 anos atrás.

PERSONALIDADES NEGRAS LANÇA NOVOS AUTORES E BIOGRAFIAS

Coleção de livros sobre negros faz sucesso e em dois anos lançou a biografia de onze personalidades negras.

Em geral, os negros se destacam nas artes e esportes, quando seus feitos têm ampla divulgação como no caso do retorno do jogador Ronaldinho Gaúcho ao futebol brasileiro. Poucas vezes, porém, nomes ilustres em outros campos de conhecimento, são lembrados por sua notável contribuição.
Este é o caso do engenheiro André Rebouças ( o modernizador da engenharia brasileira), Theodoro Sampaio (geógrafo que ampliou o conhecimento geológico brasileiro), Milton Santos ( um dos maiores geógrafos do mundo), Lima Barreto (que inaugura o romance realista no Rio de Janeiro), Odo Adão(notável cirurgião plástico), entre outros.
Pensando em ampliar o conhecimento público em relação a estes grandes nomes negros do conhecimento restrito das elites intelectuais, o professor Carlos Nobre, da PUC-Rio, apresentou o projeto Coleção Personalidades Negras – série de livros biográficos de grandes nomes afrobrasileiros- para Ary Roitman, da Editora Garamond, que bancou a idéia.
O projeto também visou atender ao decreto-lei 10.639/2003, do governo federal, que tornava obrigatória o estudo da cultura africana nos cursos fundamental e médio das escolas brasileiras.
Depois de sete anos de vigência da lei, o mercado para estudos afro no Brasil se ampliou consideravelmente, sendo abertas diversas pós graduações lato sensu sobre cultura afrobrasileira e África em diversas universidades públicas e privadas do país. Neste sentido, a Personalidades Negras vem servindo como material didático importante para estes cursos.
Outra contribuição importante do projeto foi o lançamento de novos escritores afrobrasileiros que passaram a escrever sobre grandes nomes de sua cultura. Foram os casos de Angélica Basthi, Kátia Santos e Iara Santos.
Também foi aberto espaço para acadêmicos com trabalhos significativos sobre personagens que quebraram barreiras e se tornaram nomes de destaque na sociedade brasileira. Foram os casos de Nelson Prudêncio e Mauricio de Barros Castro.
Também participam como autores de biografias nomes nacionalmente conhecidos como o historiador Joel Rufino dos Santos, Haroldo Costa, Dau Bastos e Maria Alzira Brum Lemos.
Em dois anos, o projeto lançou 11 livros sobre trajetórias negras brilhantes cujas histórias ampliam e lançam luz sobre a capacidade negra em superar obstáculos e antagonismos. As primeiras personalidades biografadas foram: Machado de Assis(por Dau Bastos), Pelé( por Angélica Basthi) e Aleijadinho, (por Maria Alzira Brum Lemos). Todas, em suas áreas de conhecimento, se tornaram talentos incontestáveis.
São Paulo na Coleção
A escritora Carolina Maria de Jesus é um dos nomes negros biografados na Personalidades Negras pelo historiador Joel Rufino dos Santos, que associa a trajetória da autora de “Quarto de Despejo” com a trajetória da periferia de São Paulo. Joel Rufino mostra que o livro de Carolina que vendeu 70 mil exemplares em 1960 ( um fenômeno para época) foi traduzido para 40 idiomas. Segundo Joel Rufino, até 2009, o livro tinha vendido mais de um milhão de exemplares. Nascida em Minas Gerais, Carolina cresceu/viveu como catadora de lixo, na Favela do Canindé, na periferia de São Paulo. Foi a primeira escritora negra que virou best-seller no Brasil.
Outro nome de peso de São Paulo na coleção é Emanoel Araújo, fundador e diretor do Museu AfroBrasil de São Paulo. Trata-se de um negro que transita pelos espaços de prestígio e poder na nossa sociedade. Sua trajetória é ampla como artista plástico, editor, designer, criador de museus, curador e gestor público sempre teve como meta prioritária a produção de conhecimento acerca do legado africano no Brasil.
Ao seu modo, Araújo vem realizando uma poderosa ação valorizativa da população negra ao mostrar com imagens que o racismo é, sobretudo, fruto da ignorância acerca do outro. Em tempos de discussões acirradas, e nem sempre produtivas, sobre o papel das ações afirmativas e a questão do mérito, vale a pena conhecer um personagem com esse perfil e essa estatura.
Pelé, por representar um ícone mundial negro no esporte, foi um dos primeiros nomes da Coleção, biografado pela jornalista Angélica Basthi. O interessante no livro de Angélica é que Pelé é também apresentado como um ser humano como outro qualquer, vítima de golpes de sócios, que já foi discriminado por ser negro e que recebeu na vida alguns apelidos racistas.

Dona Ivone Lara: 90 anos.
Este ano, a Coleção está lançando mais quatro livros, trazendo biografias bastantes diferenciadas. É o caso, por exemplo, da ex-pastora, integrante da ala de baianas, fundadora do Império Serrano e sambista que teve obras gravadas por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, entre outros, Dona Ivone Lara.
Ela, em 2011 completa 90 anos, e está sempre ativa, participando de gravações e shows. Dona Ivone Lara é uma das primeiras mulheres sambistas que faz sucesso como autora e cuja vida rica – como mulher e negra – traz atrás de si uma história especial do Rio de Janeiro através da zona norte.
Além de Dona Ivone Lara( por Kátia Santos), a Coleção lança Mãe Beata de Yemonjá (por Haroldo Costa), Emanoel Araujo (por Nelson Inocêncio) e Mestre João (por Mauricio Barros de Castro).
Estão previstas para 2012 as biografias de Lima Barreto (romancista), André Rebouças(engenheiro), João do Rio (jornalista/escritor), Milton Santos (geógrafo), Luiz Gama (abolicionista), Theodoro Sampaio (geógrafo),

Todos os livros da Coleção:




1. PELÉ, Angélica Basthi

2. ALEIJADINHO, Maria Alzira Brum Lemos

3. CAROLINA MARIA DE JESUS, por Joel Rufino dos Santos

4. TIA CARMEM, por Iara da Silva

5. JOSE DO PATROCINIO, por Uelington Farias Alves.

6. MACHADO DE ASSIS, por Dau Bastos

7. CRUZ E SOUZA, por Godofredo de Oliveira Neto

8. DONA IVONE LARA, por Katia Santos

9. MÂE BEATA, por Haroldo Costa.

10. MESTRE JOÃO, por Mauricio Barros de Castro.

11. EMANOEL ARAUJO, por Nelson Inocêncio

O RIO DE JANEIRO DE MACHADO DE ASSIS

Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, amou sua cidade como poucos, e os nos deixou páginas maravilhosas do Rio do século XIX.

O Rio de Janeiro não é uma cidade maravilhosa porque assim o trading turístico quer, para faturar mais, como o local onde , em primeiro lugar, os turistas estrangeiros põem o pé no Brasil.

Não é bem assim.

Na verdade, alguns cariocas têm identificação profunda pela cidade onde nasceram e não abrem mão de fazer persistentes declarações de amor ao Rio de Janeiro.

Um destes apaixonados mais emblemáticos pelo Rio de Janeiro é o maior escritor brasileiro, o velho Machado de Assis. Sempre que podia, em seus romances e crônicas, Machado fazia questão de mostrar os cenários do urbano carioca (ruas, becos, vielas, morros, palacetes, mar, praças etc).

De uma forma apaixonante, diga-se de passagem.


Machado, um afrodescendente, que nasceu no antigo morro do Livramento, na Saúde, atrás da Central do Brasil, era filho de uma lavadeira portuguesa e de um pintor afro de paredes. Sabia como nenhum outro explorar a geografia do Centro da cidade, onde nascera.

Ele foi coroinha da igreja Nossa Senhora da Lampadosa, no Centro, na Avenida Passos, durante a infância pobre e sem perspectiva de ascensão.

Autodidata, se tornou jornalista, cronista e escritor de renome internacional. Ele é o escritor mais estudado do Brasil pelos críticos brasileiros e estrangeiros.

Sua obra inclui trabalhos nas seguintes áreas: poesia, prefácios, jornalismo, teatro, tradução, crítica, crônicas, conto e romance.

Por conseguinte, um dos seus traços marcantes é a glorificação da cidade onde nasceu através de personagens e crônicas, onde o Rio de Janeiro, sua geografia, sua população e suas construções se destacam como expressões da arte de observação machadiana.

Ele, no entanto, além da glorificação, foi um crítico ácido das autoridades públicas, pois, o Rio de sua época, apresentou grandes problemas sanitários e sociais que deixavam o grande escritor indignado em seus escritos.

Neste sentido, Machado de Assis pode ser considerado um escritor travestido de geógrafo-historiador da cidade do Rio de Janeiro, pela qual ele tinha paixão avassaladora.
Segundo diversos estudiosos da obra machadiana, o Rio de Janeiro em que Machado de Assis viveu dificilmente poderia ser considerado "a cidade maravilhosa" que se transformaria no mais conhecido cartão postal do país, a partir dos anos 1940.
A paisagem natural imponente do Rio de Machado servia de cenário para inúmeras mazelas sociais, incluindo graves problemas de saúde pública e planejamento urbano.
Em boa parte da maior metrópole brasileira da época, as ruas eram estreitas, as vielas sujas, e a iluminação, rede de esgotos e abastecimento de água eram inexistentes ou precários.

As casas de tijolo e alvenaria eram escassas, e uma parcela significativa da população era obrigada a procurar moradia em cortiços e favelas, enquanto um segmento reduzido vivia em elegantes palacetes nas ruas de Botafogo e Laranjeiras.
Entre os dois extremos - cortiços e palacetes - uma classe média emergente expandia a cidade para os subúrbios construindo novos modelos de moradia.
Esta nova classe social era formada por pequenos assalariados, funcionários públicos, negociantes bem-sucedidos, médicos e integrantes das milícias nas últimas décadas do século XIX.

Naquela época, metade do século XIX em diante, os transportes urbanos praticamente não existiam, e os que existiam eram de tração animal - charretes ou carroças puxadas por um ou dois cavalos, quando não por braços humanos.
Foi somente a partir de 1892 que alguns bondinhos, chamados "elétricos" começam a circular na cidade, ligando o Flamengo e o Largo da Carioca.
Mesmo assim, podemos sentir, na obra machadiana, uma pulsação fantástica de uma identidade carioca, através de personagens e cenários particulares. Ou seja, percebemos, como Machado tenta, a todo o tempo, incluir a cidade e seus cenários específicos na relação orgânica de seus personagens com o Rio de Janeiro.
Há, efetivamente, um amor declarado do escritor afro com sua cidade e seus personagens.
Em “Dom Casmurro”, um dos personagens de Machado diz que um dia irá escrever a “ História dos Subúrbios” do Rio de Janeiro, o que, porém, não aconteceu na vida real do escritor.
Mas, em compensação, além da crítica às mazelas de seu tempo, o escritor compôs a história das principais ruas, dos bairros próximos do Centro, os palácios e os grandes problemas de saúde pública como a febre amarela, as enchentes, o lixo e falta de saneamento.
Em Esaú e Jacó, por exemplo, Machado parece se deter no processo de evolução urbana do Rio de Janeiro, quando focaliza o Morro do Castelo – demolido porque no local, que, seria urbanizado para abrigar um evento internacional nos primeiros anos do século XX.
No livro, o escritor mostra que o morro era residência de pessoas modestas, sempre sobressaltadas com a ameaça de demolição de suas casas. Ele parecia, assim, se lembrar de sua infância pobre no morro do Livramento, onde nascera.
Novamente, no romance Esaú e Jacó, Machado mostrou o personagem Santos fascinado pelos palacetes da época, principalmente o Palácio Nova Friburgo, hoje conhecido como Palácio do Catete, que já foi sede do governo federal, e entrou para a história como o local onde o ex-presidente Getúlio Vargas se suicidou, dando um tiro no coração, em 1954.
Ruas antigas e seus atuais nomes
Embora Machado relembre sempre os nomes novos que as ruas antigas obtiveram, em algumas passagens de suas obras, no entanto, alguns não conseguiram identificar o nome da rua que o personagem está circulando. Em vista disso, é possível identificar os nomes atuais destas ruas machadianas:
  • LOTOEIROS – hoje Gonçalves Dias.
  • VALA – hoje Uruguaiana.
  • LARGO DO ROCIO – hoje Praça Tiradentes.
  • MATACAVALOS – hoje Rua Riachuelo.
  • LARGO DA MÃE DO BISPO – hoje Rua Marechal Floriano.
  • CANO – hoje Rua Sete de Setembro.
  • PIOLHO – hoje Rua da Carioca.
  • OURIVES – hoje Rua Miguel Couto.
  • DIREITA – Av. Primeiro de Março.


O ROTEIRO CARIOCA DE MACHADO
1. A cidade dentro do personagem
Mas tudo cansa, até a solidão. Aires entrou a sentir uma ponta de aborrecimento: bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, estranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Metia-se por bairros estranhos, trepava aos morros, ia as igrejas velhas, as ruas novas, a Copacabana e a Tijuca. O mar ali, aqui o mato e a vista acordavam nele uma infinidade de ecos, que pareciam as próprias vozes antigas. (Memorial de Aires)
2. Saúde, Gamboa e Santo Cristo
(..) passou o Saco do Alferes, passou a Gamboa, parou diante do cemitério dos ingleses, com seus velhos sepulcros trepados pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do reis comidas, estripadas, o cais encardido e a vida lá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia. ( A caminhada do personagem Rubião pela antiga zona portuária, Quincas Borba)

3. Rua do Ouvidor
Gente parada em frente ou sentada dentro das lojas, gente que descia, que subia, homens, senhoras, de vez em quando uma vitória ou tilburi, tudo isso dava à principal rua do Rio de Janeiro um aspecto animado e luzido. Viam-se aqui e ali alguns deputados trocando notícias políticas ou conquistando senhoras que passavam...Também ali estava uma grande parte da áurea juventude – le jeunesse do dia ou encarecendo a beleza da moda. Estranharia aquela designação quem reparasse que entre os rapazes havia também algumas suíças grisalhas e outras totalmente brancas.
(...) A Gazeta do Rio de Janeiro.
(...) o lugar mais seguro para saber notícias.
( Quincas Borba)
4. Rua Gonçalves Dias
Algumas vezes íamos jantar a um restaurante da rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação furtamente do Diário do Rio: o poeta morara ali outrora, e foi Múzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal”. ( Páginas Recolhidas)


5. Rua da Alfândega
(...) é minha última vontade que o caixão em que meu corpo houve de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, a rua da Alfândega. ( Papéis avulsos)
6. Lapa
Fui chegando aos Arcos, entrei na rua Matacavalos (hoje Riachuelo). A casa não era logo ali, mas muito além da dos Inválidos, perto do Senado.( Dom Casmurro)
7. Largo de São Francisco de Paula
No largo de São Francisco estava um carro dela, perto da igreja. Íamos a Rua do Ouvidor, a dez passos de distância ou pouco mais. Parei na esquina, via-a caminhar, parar, falar ao cocheiro, entrar no carro que partia logo pela travessa, naturalmente para os lados de Botafogo. ( Memorial de Aires )
8. Desordem urbana
As ruas do Rio de Janeiro andam imundas.
Que cidade do Rio de Janeiro imunda!
Quem tem culpa de estares as ruas imundas? A Câmara Municipal é acusada de deixar que as ruas continuem como estão.
A falta de asseio das ruas é danosa para a salubridade pública.
As ruas alagam a cidade porque as valas estão sempre entupidas.
A lama nas ruas do Rio de Janeiro daria até para secar pelos raios do sol”
( Crônicas)
9. Palácio do Catete
(...) levantou os olhos para ele com o desejo de costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o palácio viria a ter na República: mas quem então previa nada ? Quem prevê coisa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo; dar ali grandes festas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheias de admiração, de rancor ou de inveja .
A casa descobria-se a distância, magnífica; Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nela, cresceu com ela. A estatueta de Narciso, no meio do jardim sorria à entrada deles, a areia se fez relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, figurando no ar a alegria de ambos.( Esaú e Jacó)
10. Point na Praça Tiradentes
Quereis saber do último acontecimento ? Era ir a Sociedade Petalógica. Da nova italiana? Do novo livro publicado? Do último baile? Da última peça de Macedo de Alencar ? Do estado da praça (Tiradentes) ? Dos boatos de qualquer espécie? Não precisava ir mais longe, era ir à Petalógica. ( Crônicas)


11. Largo da Carioca
Chegaram ao largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ele entrou pela Rua Gonçalves Dias, ele virou pela rua da Carioca, ( Memorial de Aires)