28 de mar. de 2011

IDENTIDADES MORTÍFERAS A QUESTÃO RACIAL NA ESCOLA TIA CIATA.

A Escola Municipal de Tia Ciata, ao lado do Sambódromo, se tornou referência nos anos 1980 através da aplicação da pedagogia do oprimido.

POR CARLOS NOBRE
  1. Introdução

Após uma intensa campanha nacional feita pela esquerda brasileira, a ditadura militar ( 1964-1985), imposta aos brasileiros, não teve outra alternativa a não ser anistiar políticos, escritores, jornalistas, médicos, músicos e outros setores de classe média que estavam exilados em países latino-americanos, Europa e Estados Unidos.

O retorno dos exilados se tornara uma festa completa, com a agitação de faixas e cartazes pelos estudantes e militantes de partidos de esquerda nos aeroportos que saudavam a chegada daqueles que sobreviveram no exterior durante o período autoritário.

Era uma festa diferente, mas com extremo sabor político, saudada inclusive por músicos de diversos estilos e gêneros da MPB que também se engajaram na campanha pela anistia, ampla, geral e irrestrita( 1).

Nesta festa, a perspectiva era que, dali por diante, uma nova construção do Brasil estaria sendo gestada, pois, a ditadura se esgotara em si própria, e a redemocratização era solução mais natural, com o retorno das eleições diretas para prefeitos, governadores e presidentes da República.

Particularmente, no Rio de Janeiro, o retorno de dois personagens provocaram emoções profundas nos jovens e na esquerda tradicional: do antropólogo da Darcy Ribeiro, fundador da Universidade de Brasília, e do ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
Esse retorno, então, galvanizou as boas-vindas pelo recomeço da vida democrática brasileira a partir do Rio de Janeiro, que, acabara se tornando no primeiro ponto de desembarque dos exilados que retornavam após longo divórcio com a nação imposto pelos militares.

Considerado um político populista pelos cientistas políticos e sociólogos, Brizola recriou o antigo PTB ( Partido Trabalhista Brasileiro), fundado por Getúlio Vargas. Mas logo foi rebatizado de PDT – Partido Democrático Trabalhista - após uma guerra judicial pela posse de sigla PTB que acabou nas mãos da ex-deputada Ivete Vargas.
Mesmo sem contar com a sigla mitológica, o político gaúcho atraiu para si, mais à frente, todas as massas despossuídas das áreas metropolitanas do Rio de Janeiro, principalmente aqueles trabalhadores sem qualificação que viviam de pequenos serviços.
Em 1982, Brizola, após uma campanha onde partiu com 5% dos votos, e enfrentando a máquina da grande imprensa, derrota os herdeiros do chaguismo e se torna no primeiro governador do Rio de Janeiro eleito pós ditadura militar( 2).
A vitória brizolista propicia que determinados grupos históricos da luta social organizada no Rio de Janeiro ingressem no governo e apresentem propostas socialistas de mudanças substanciais para a gestão do estado.
Neste grupo se encontram, por exemplo, educadores populares, pedagogos e militantes do movimento negro que ocupam diversos cargos no primeiro escalão do governo brizolista. Eles passam então a instaurar novos modelos de recuperação da cidadania das camadas populares.
Naquele momento, a sociedade brasileira, em especial, o Rio de Janeiro, passava por um processo doloroso de rediscussão do papel do estado e de seu uso político-repressivo pela ditadura militar, que, inclusive, usou a estrutura do aparelho policial para combater os dissidentes do regime ( 3).
Neste sentido, os anos 1980, que demarcam a chegada dos exilados para o convívio da sociedade brasileira, se tornam os anos da recuperação da participação popular e da cidadania no mundo principalmente dos centros metropolitanos.
A eleição de Brizola para governador do estado do Rio de Janeiro mostra uma ruptura importante com a tradição chaguista imposta no estado e inaugura um tipo de governo popular-socialista que deixa marcas profundas no modo de ser da população pobre carioca.

2. Apostando na educação
Ao assumir o governo estadual, em 1983, tendo o prof. Darcy Ribeiro como vice e seu principal assessor, Brizola delegou para ele seu maior projeto social: a construção de 500 Cieps ( Centros Integrados de Educação Pública), ou seja, escolas de educação fundamental, de tempo integral, em pré moldados, com projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, espalhados por todo estado, cuja clientela era crianças pobres, negras e consideradas incapazes de mudar a vida através da educação.
A construção dos Cieps – que se tornara uma marca também de marketing político, pois, as escolas eram edificadas em locais onde passavam diariamente milhares de transeuntes – acabou se tornando uma das duradouras consagrações do compromisso pedetista com as camadas populares, em especial, os negros.
Esse compromisso se acentuou, mais à frente, quando o mesmo Darcy Ribeiro - construtor da Universidade do Norte Fluminense e um dos maiores antropólogos do país - atendeu a uma proposta do falecido deputado negro José Miguel para construção de um monumento a Zumbi, o maior líder do Quilombo de Palmares, na Avenida Presidente Vargas, próximo do prédio “Balança mas não cai”.
A proposta uniu todas as correntes do movimento negro fluminense da época, pois, este monumento era a aspiração antiga de todos os militantes que, naquele momento, estavam envolvidos nas lutas contra o racismo e as desigualdades sociais, aprofundadas pela ditadura militar, apesar do país ter crescido a taxas acima de 9% nos governos militares.
Em 1984, então, foi erguido o monumento a Zumbi, estabelecido na base de uma pirâmide de concreto e representava a cabeça de um guerreiro yorubá, provavelmente de Oduduá, o construtor da dinastia yorubá, o guerreiro mais poderoso do mundo, segundo a tradição deste povo nigeriano (4).

Logo, em seguida, em 1986, para consolidar a aliança com a comunidade negra carioca, Brizola ergue ainda a Passarela do Samba ou Sambódromo, na Avenida Marquês de Sapucaí, transversal a Presidente de Vargas, em frente ao Monumento de Zumbi.
De lá para cá, o Sambódromo representou a administrativamente a inovação da modernidade do mundo do samba e uma aliança popular com o brizolismo, embora o desfile das escolas de samba tenha afastado a população em geral como assistente e ter se tornado um espetáculo turístico de grande investimento financeiro.
O terceiro passo, que, aqui, nos interessa, particularmente, foi a criação da Escola Municipal Tia Ciata, nos camarotes do Sambódromo. Essa escola não nasceu de uma investida estatal, mas pela iniciativa de pedagogas e historiadoras identificadas com as lutas sociais mais gerais que encampavam a nova proposta de transformação geral que o governo pedetista trazia em seu programa de ação ( 5).
A pedagoga Ligia Costa Leite, aluna de Darcy Ribeiro e admiradora das teses de Paulo Freire, liderou essa empreitada. Ao conseguir três camarotes do Sambódromo para instalar a escolinha de alfabetização de meninos e meninas de rua do Centro fora do período carnavalesco, ela acabou criando uma referência neste tipo de trabalho.

3. A Tia Ciata no espaço público
As educadoras resolveram adotar então na escola instalada nos camarotes improvisados a metodologia de Paulo Freire, onde o aluno das camadas populares é o objeto central da pedagogia do oprimido. Neste sentido, perceberam que, para alfabetizar crianças de rua do Centro, era necessário uma aproximação completamente antagônica ao modelo oficial, pois, caso contrário, não teriam alunos para começar um trabalho pioneiro em pedagogia no estado do Rio de Janeiro.

Naquele momento, no início da década de 1980, várias questões agitavam os militantes do PDT e os movimentos sociais cariocas. Uma dessas questões era o menino de rua, aquele sujeito que vivia de pequenos assaltos, se drogavam com cola e andavam maltrapilho pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, sem destino, sem regras, sem leis.
Eram, neste particular, as vítimas preferenciais dos grupos de extermínio, que viam crescendo dentro do estado do Rio de Janeiro. No final dos anos 1980, esses grupos de extermínio focaram sua atuação em matar os pequenos bandidos na região metropolitana ( 6 ).
Este fato fez crescer o movimento de direitos humanos voltado para as crianças e adolescentes redundando na sanção do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – pelo então presidente da República, Fernando Collor de Mello, em 1990, possibilitando que diversos níveis estruturais dos poderes público e privado colocassem os jovens brasileiros como alvos de diversas políticas educacionais e sociais voltadas para a infância e adolescência.

Alem disso, como frisamos mais atrás, o governo Brizola foi uma ponte fundamental para as discussões raciais, pois, no primeiro e segundo escalão desta administração havia a presença de militantes ou não ocupando cargos estratégicos.

Aliado a isto, renascia as movimentações negra pelo estado, com surgimento de inúmeros grupos de discussão racial, da critica às tradicionais políticas de segurança pública e a necessidade de politização do cotidiano após longo inverno sem fala ( 7 ).


Neste ambiente rico de contradições e de novas propostas políticas populares, surgia a Tia Ciata, um emblema de contraposição à escola tradicional da rede municipal, atraindo, neste sentido, mais 300 alunos dos morros e ruas do Centro, de idades variadas, em seu primeiro momento de apresentação para à sua clientela.

Quem eram os alunos desta escola ? Eram os adolescentes dos morros do Centro, repetentes do sistema convencional de educação, envolvidos com a criminalidade ( muito deles precoces na sexualidade), amadurecidos nas disputas de poder das ruas da cidade e com um discurso transitório sobre a vida como projeto social-político, ou seja, não acreditavam que poderiam estar vivos no dia seguinte.

Muitos deles chegavam descrentes em relação ao papel da escola, pois, não acreditavam que pudessem estudar “ normalmente” e se tornarem cidadãos respeitáveis como os outros meninos de sua idade, brancos, com família estruturada, com uniforme escolar limpo e vistoso.

A escolinha, então, se preparou para esta clientela. As professoras acabaram com quase todos os valores presentes na rede tradicional de ensino, ou seja, na escola não havia seriado e os repetentes de outras escolas municipais eram aceitos imediatamente.

Naquele momento, a Tia Ciata entendia que os alunos “fracassados” do sistema tradicional podiam ser reeducados sob outra perspectiva metodológica, ou seja, através da própria história e cultura que o menino de rua e da favela trazia para dentro deste novo núcleo de saber.

Neste sentido, a Tia Ciata assumiu uma postura essencialmente provocadora e dialética, ou seja, olhar o aluno por dentro a fim de que pudesse alfabetizá-lo com maior qualidade e perigo. Isto porque, o ensino, quer queira quer não, é político, pois transforma vidas.

Agora, para melhor compreensão do fenômeno desta escola, vamos analisar por etapas quatro transformações que ocorreram na Tia Ciata e sua imediata repercussão entre professores, alunos e o sistema tradicional de ensino público.

4. A escola apostou na cultura negra de sua clientela.

Ou seja, as professoras foram treinadas para entender a cultura negra e suas complexidades. Tanto foi assim que o próprio nome da escola – Tia Ciata – é uma homenagem a mãe de santo baiana Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, em cuja casa, no início do século XX, na Praça Onze, nascera o chamado primeiro samba urbano, “ Pelo telefone”. Isto é, a escola fora instalada no território por onde circulara Tia Ciata, e assim pareceu se adaptar às tradições africanas daquele território, que era chamado, no início do século XX, de “ Pequena África”, pelo sambista Heitor dos Prazeres, devido à presença forte e destacada da comunidade nesta região. Além do mais, a escolinha, mais tarde teve a companhia do Monumento a Zumbi, como frisamos mais atrás, formando, naquele local, um grande triângulo afro-brasileiro, juntamente com a Passarela do Samba.

Por isso tudo, nas atividades de lazer e extraclasse da escola, os meninos e meninas faziam rodas de samba, prestavam homenagens a Zumbi em 20 de novembro ( Dia Nacional da Consciência Negra) e usavam as mais diversificadas culturas negras para reforçarem sua cidadania e quebrarem com a pecha que seus modos de vida não valiam nada.

Por essa perspectiva, a grande momento teórico nesta aposta foi quando a pedagoga Ligia Costa Leite defendeu a tese que seus alunos eram “ invencíveis”, isto é, os jovens afrodescendentes criam formas diferenciadas de relações sociais com o mundo, cotidiano e sistemas de controle de poder para subverter a dominação e manter integralmente a tradição da ancestralidade de sua cultura.

Veja, neste sentido, como ela, analisava está questão há 19 anos :

Hoje é sabido que o negro expropriado de sua cultura, de formas sociais e até do seu próprio corpo, recria, ainda na senzala, meios de convivência e organização religiosa fora do controle dos senhores. O caráter festeiro torna-se uma das principais armas de resistência à dominação, juntamente com o lado religioso, que favorece a defesa dos valores, sentidos e significados de vida. (...) De fato, esses caracteres derivam de novas formas de sobrevivência num mundo que é hostil a sua presença e a sua cultura, aqui entendida como valores, comportamentos, religiosidade ( 1991:51)”

5. Amenizar a censura em diversas atividades escolares

Em geral, a clientela da Tia Ciata era barulhenta, inconformada e indomável. Em muitas escolas, essas crianças fugiam do aparelho escolar convencional devido ao excessivo controle estatal com, inspetores e bedéis que impediam atos considerados menos “ educados”. Conhecedoras deste comportamento dos meninos de rua, as professoras da Tia Ciata procuravam censurar o menos possível o comportamento dos alunos para mantê-los dentro da escola. Por isso, era comum ver alunos usando somente bermudas, alguns indo às aulas somente de calções sujos, outros sem tomar banho e muitos deles correndo e brincando pelos corredores da escola, numa guerra sem fim por disputas de espaços. Em geral, no auge das brincadeiras, muitos agarravam-se às professoras e em alguns casos acabavam machucando-as, devido à força que imprimiam nos abraços, que, na verdade, confirmavam que eles estavam adorando seus orientadores. Essa proposta de interação, por conseguinte, era também uma tentativa de desmistificar a escola tradicional “bem comportadinha”. A idéia que rolava uma grande “bagunça” na Tia Ciata também não procede, pois, na verdade, tratava-se de uma experiência pedagógica feita por rigoroso controle teórico. Ou seja, a pedagogia da Tia Ciata sabia até onde poderia levar a experiência sem provocar tensões entre os professores, mães, alunos e funcionários. As professoras também contam que, em muitos casos, os jovens passaram a tomar iniciativa de se organizarem dentro da escola e a trazer outros companheiros de rua para dentro da Tia Ciata, pois, ali, podiam estudar sem serem “ molestados”. Caso interessante foi que os meninos “infratores”, após algum tempo, passaram a frequentar a escola sem levar armas brancas. Ou seja, eles estavam entendendo que o território Tia Ciata era um local especial de reflexão e saber e não um espaço de disputa de gangues.

6. Valorização da biografia do aluno

Ao contrário das escolas da rede convencional, a Tia Ciata, valorizava a história de vida do aluno, ou seja, sua experiência em casa, na favela, nas ruas ou relações familiares eram insumos de primeira linha usados criticamente nas aulas pelos professores. Neste caso, aqui, o nível de aprendizagem dava picos elevados, mostrando, por conseguinte, que o cotidiano de qualquer pessoa pode servir para elaboração de saberes. Quando a escola deixou o Sambódromo e passou a para um imóvel próprio, na Rua de Santana com Presidente Vargas, causou repercussão o fato de muitos desenhos de alunos de sete a 12 anos reproduzirem as guerras entre polícia e traficantes no morro. As professoras não censuraram os alunos, pois, ao privilegiarem esta temática na atividade extraclasse, estes alunos, na verdade, copiavam o seu cotidiano nos morros, marcados pela violência e inexistência de políticas públicas para adolescentes. Não que os educadores apostassem nesta realidade como exibição de mazelas, mas não podiam evitá-las nem exterminá-las do inconsciente dos meninos e meninas da Tia Ciata.

7. Rediscutindo o fracasso escolar sob nova perspectiva pedagógica

Para os educadores da Tia Ciata, o fracasso escolar de alunos pobres e negros estava justamente nos currículos, programas e critérios de avaliação elaborados e planejados para um aluno “ ideal”. Ou seja, um aluno identificado como uma criança “branca”, enquanto o sistema nega e desqualifica o viver do aluno negro. Este, pressionado por estas negativas, cai de rendimento, foge da escola, ganha às ruas e vê as experiências escolares como frustantes e destruidoras de sua identidade enquanto afrodescendente. Foi essa armadilha que a Tia Ciata evitou cair e acabou se tornando um modelo único de alfabetização de jovens em risco de vida, sob os auspícios da Unicef, o organismo da ONU para a infância e adolescência.


8. A crise da Tia Ciata

Com essa perspectiva transformadora, a escola acabou, em menos de dois anos após iniciada, se tornando uma referência de alfabetização de meninos e meninas de rua, sendo recomendada pela Unicef como modelo de alfabetização de jovens carentes a ser seguido em diversos estados brasileiros.

Em vista disso, a escola saiu dos camarotes do Sambódromo, ganhou um imenso imóvel na Rua Santana com Presidente Vargas, na gestão do então prefeito Saturnino Braga, cujo trabalho estimulava experiências deste porte na administração pública.

Tal fora a força da escola que Saturnino compareceu à inauguração da nova Tia Ciata. Esta, por seu turno, viu crescer sua clientela e começou a diversificar seus currículos e programas. Por sua vez, devido ao sucesso, a escola foi alvo da mídia, que mostrava-se espantada com o sucesso de uma escola somente para meninos e meninas em risco social.

Com o fim do governo Saturnino, a Tia Ciata passa a ser um alvo de “desconstrução” de sua pedagogia a partir de Marcello Alencar, novo prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
Os novos dirigentes da Secretaria Municipal de Educação não viram com bons olhos o fato de a Tia Ciata ser um escola afastada das demais da rede, com independência e identidade próprias, se destacando em termos midiáticos das demais escolas municipais, gerando, com isso, desconforto entre outros professores e diretores da rede municipal de educação.
A própria Secretaria Municipal de Educação começou então uma campanha para “adequar” a Tia Ciata à rede municipal – qualquer aluno poderia estudar lá – encontrando, por conseguinte, resistência das criadoras da escola. No entanto, as pressões se fizeram sentir com mais força, que possibilitaram a saída das criadoras da Tia Ciata de sua direção na nova gestão municipal.
A escola acabou então se tornando “mais uma” da rede municipal e, com isso, os meninos e meninas, inadequados com a nova metodologia, abandonaram a escola e retornaram às ruas. O resultado foi que dezenas deles foram mortos por exterminadores pagos por comerciantes que queriam espantar de suas redondezas a presença “inconveniente” dos chamados pivetes.
Este fato ficou muito claro na chacina da Candelária, em 26 de julho de 1993, quando oito meninos e meninas de rua foram mortos por policiais militares integrantes de grupos de extermínio, em frente à tradicional igreja da Candelária.
Passados 23 anos daquela experiência de grande impacto no sistema público de ensino do estado do Rio de Janeiro, em 2006, todavia, o então prefeito César Maia, dá o último golpe na Tia Ciata.
Sob pretexto que iria reformar a antiga escola, para aumentar mais sua capacidade, o prefeito, na verdade, corta a escola ao meio, e transformando-a em duas, ou seja, fica a antiga Tia Ciata, bem menor do que antes, e agora junto com uma nova escola, surge a Rachel de Queiroz.
Ou seja, o amplo espaço da Tia Ciata foi transformada em duas escolas. Aquela área imensa que a Tia Ciata ocupava historicamente foi reduzida ao meio, uma mostra que políticas específicas, diferenciadas e destinadas aos grupos historicamente marginalizadas sempre encontram duras e inconcebíveis resistências no aparelho de estado.

9. Conclusão
As experiências escolares bem-sucedidas para as populações pobres acabam muitas vezes destruídas sob os mais estranhos argumentos, principalmente quando grupos e partidos com propostas ideológicas antagônicas às classes populares assumem o controle do poder público. Em nossa avaliação, este foi o caso típico da Tia Ciata, que instalara uma “ mini revolução” no ensino fundamental, com um método original de alfabetização de meninos e meninas de rua do Centro do Rio de Janeiro, entre 1983-1985. A desmobilização de seus métodos pedagógicos não teve justificativa coerente e partiu em geral de argumentos tecno-burocráticos com finalidade impedir a discussão de uma educação libertadora para as massas despossuídas.

10. Notas

  1. A ditadura militar brasileira chegou a um impasse com governo do general João Batista de Oliveira Figueiredo. Ele foi obrigado a propor em 1979 a abertura democrática e a assinar documento garantindo a anistia ampla geral e irrestrita aos dissidentes do regime que viviam no exterior, beneficiando inclusive os torturadores dos presos políticos. Participante desta luta política, a MPB ( Música Popular Brasileira) se destacou com shows, discos e músicas reafirmando o destino da democracia e louvando a volta de políticos tradicionais ao país como Brizola, Arraes, Gabeira, Palmeira e tantos outros que foram obrigados a se exilar no exterior. Particularmente, uma música se mostrou um hino da época. Trata-se de “ Tô voltando”, de Paulo César Pinheiro, ex-marido de Clara Nunes, gravada por Simone, que virou um hit nacional. Nela, o exilado fazia uma série de pedidos ( com,ida, bebida, manias etc) a mulher, coisas do cotidiano doméstico nacional. Ele, o exilado, através da letra, há anos estava afastado dessas elementos culturais brasileiros, e por isso, queria devorá-los sem dor ou piedade após ser regressar ao país. No entanto, na letra, se destaca principalmente o fato do exilado querer encontrar a mulher exuberante, apesar da cultura da cerveja e do barzinho serem suas prioridades de reminiscências mais queridas, interrompidas bruscamente pelos militares em 1964.



2. Ao regressar ao Rio de Janeiro, Leonel Brizola encontrou uma máquina política difícil de ser vencida: o chaguismo, uma herança do ex-governador Chagas Freitas. Esta máquina era uma montagem especial de assistencialismo mesclado as ações do coronelismo urbano, com voto instrumentalizado através do uso da mídia popular ( na época, o jornal o Dia). Mesmo assim, a força brizolista derrotou a máquina chaguista, apesar de várias correntes oposicionistas terem se unido para impedir que uma candidatura popular chegasse ao Palácio Guanabara. Ao derrotar a máquina chaguista, Brizola, então, se tornava, então, em um governador muito especial. Ou seja, o primeiro dirigente do estado fluminense pós ditadura e aquele que trazia em seu bojo transformações profundas na forma de funcionar a máquina política, agora ligeiramente desmontada com a eleição um novo grupo político, em geral, ligado às camadas populares.

3. A ditadura militar não ficou contente em apenas utilizar as unidades de informações das três Forças para esmagar os adversários e principalmente as guerrilhas que estouraram no país durante a década de 1970. Todos as forças civis – bombeiros, polícia militar e civil – foram adaptadas para controlar e espionar os adversários do regime. Em geral, eram espionados cantores da MPB, líderes comunitários, estudantes, líderes de movimentos sociais, entre outros, que poderiam “ pôr a pique” o regime implantado em 1964. Na Polícia Militar, um dos maiores braços do sistema fora a P-2 ( Serviço Reservado), onde policiais militares trabalhavam em trajes civis, infiltrados em diversos movimentos sociais, com a finalidade de espionar e controlar os passos de lideranças anti-regime ditatorial. Na Polícia Civil, ficou bem conhecida a atuação do Dops ( Departamento de Política e Ordem Social), que sobreviveu inclusive pós-ditadura militar.

4. Zumbi dos Palmares é a imagem do guerreiro negro que mais comove e entusiasma o Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, que foi o município pioneiro em criar uma escultura em sua homenagem, no início dos anos 1980, com o patrocínio do poder público. Logo, em seguida, surgiram, outros monumentos dedicados a Zumbi, como em Volta Redonda, Búzios, Caxias e em Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. Em Maceió, o aeroporto acabou tendo o nome de Zumbi dos Palmares. Recentemente, em Salvador, foi inaugurado um monumento a Zumbi. Brasília também tem um busto em praça pública que faz homenagem ao famoso líder de Palmares. Sem que saibamos, existem ainda outras homenagens a Zumbi dos Palmares feitas por municípios e estados por este Brasil afora, um reconhecimento da força e presença da maior liderança popular-política -negra ao longo de nossa história.

5. A ditadura militar não ficou contente em utilizar os setores informações das três forças armas – Marinha, Exército e Aeronáutica - para localizar os chamados subversivos ou guerrilheiros que lutavam com armas em punho contra o regime militar imposto em 1964. Nestes sentido, os governos estaduais foram obrigados durante à ditadura militar a colaborar através de três forças estaduais – bombeiros, policiais militares e policiais civis – com o esquema repressivo contra subversivos.


6. O extermínio de menores no estado do Rio de Janeiro teve diversas facetas. No final da década de 1980, ele atingia crianças e adolescentes da Baixada Fluminense, região onde a cidadania dava os primeiros passos, pós ditadura. Em seguida, ele se desloca para a capital. No Rio de Janeiro, o fato mais marcante desta ação criminosa ocorreu com a chacina da Candelária, onde oito menores que dormiam na porta da mais tradicional igreja do estado, foram mortos a tiros por policias militares e informantes da polícia. A cultura de extermínio teve prosseguimento no mesmo ano com a matança de 21 moradores de Vigário Geral por policiais militares.

7. O Rio de Janeiro é uma cidade bastante politizada desde sua constituição como capital do império português em 1808, pois, aqui, uma população diferenciada e insubmissa acabou dando as regras do jogo nas ruas da cidade. Ou seja, é uma cidade que valoriza a politização do cotidiano.

11. Referências


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