28 de mar. de 2011

O RIO DE JANEIRO E A CULTURA DO MEDO

A cidade “ maravilhosa” tem também aspectos “ negativos” que facilitam as subjetividades entre diversos grupos.

POR CAIO FLAVIUS

Atemorizado, um homem, de uns 50 anos, desvia de um despacho numa encruzilhada, na Lapa.
Jovens de bermuda e peitos desnudos, usando crack, na Avenida Augusto Severo, na Glória, assustam transeuntes que decidem seguir por outro caminho, em direção ao Catete;
Mendigos nas ruas Washington Luiz e Tenente Possolo, no Centro do Rio, fazem tremer o casal de namorados, que acelera o passo ao constatarem o cenário decadente.
Na madrugada, os motoristas tendem a não respeitarem os sinais de transito receosos de assalto.
Jovens da zona sul se perdem durante um show de rock na Barra da Tijuca e acabam chegando no subúrbio cortado pelos trilhos da antiga Central do Brasil. Eles ficam desconfortáveis por encontrarem um cenário urbano antagônico ao local onde vivem.
Há algum tempo atrás, o governador mandara cercar as favelas com receio que estas pudessem se expandir para as áreas mais ricas.
Ao mesmo tempo, são comuns recusas de celebridades em fazerem o teste do bafômetro quando barrados nas ruas da zona sul durante as operações de “choque de ordem”..
Em 1808, os integrantes da corte portuguesa que fugiram dos ingleses, e se estabeleceram na cidade, “estranham” a população carioca e temeram ser atacados. Por isso, em 1809, o colonialismo português criou a Guarda Real de Polícia, o embrião do nascimento da Polícia Militar brasileira.
Podemos ainda enumerar mais comportamentos ou reações dos metropolitanos em relação às diferentes faces exibidas pelas cidades. Mas não queremos ir tão longe. Nestes comportamentos citados parece que uma palavra se destaca: medo.
Todos sentem medo do outro ou da estrutura urbana que se apresenta aos seus olhares.
Nada demais, pois, no Rio de Janeiro, convivemos historicamente com uma cultura clássica de medo.
Um estudo divulgado recentemente pelo IBGE (“ Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil”, feito a partir dos dados da PNAD 2009) mostra que 45% dos brasileiros consideram a cidade insegura.
O Rio de Janeiro, depois de Belém, é a cidade mais insegura do Brasil para os cariocas, de acordo com o estudo. Existem no país, segundo a pesquisa, 76.9 milhões de brasileiros que se sentem inseguros.
Este número é assustador.
Esta insegurança ocorre devido a diversos motivos, tais como: o noticiário midiático sobre as tragédias que diluem as certezas quanto a um futuro tranqüilo; o crescimento da criminalidade no país e no mundo; a incapacidade de o estado dar “segurança pública” aos seus cidadãos; a presença sem alteração das zonas arruinadas ou decadentes da metrópole em bairros pobres; as próprias subjetividades arroladas pelos cidadãos que criam “obstáculos”, “barreiras “ e “idealizações” para uma vida com mais segurança; a incerteza quanto a retornar vivo para casa depois de um mergulho na vida noturna; a presença dos “ feios”, gente diferente/antagônica, nos espaços urbanos; o crescimento da rivalidade entre grupos/tribos/classes; a disputa pelas melhores condições de vida nas cidades, e assim por diante.
Segundo lugar nas pesquisas de índice de insegurança nas cidades, o Rio de Janeiro infelizmente faz jus a fama, digamos assim. Isto porque, nunca foi a “cidade maravilhosa” tantas vezes apregoada. Muito pelo contrário. A cidade, tradicionalmente, sempre teve uma ordem pública conturbada e engendrou um acordo de classes para sobrevivência delas mesmas neste cenário belo/conflituoso.
Neste sentido, o carioca, ao contrário de outros estados, sempre desenvolveu uma cultura de sobrevivência, isto é, a criação de mecanismos culturais para proteger da violência, da desordem e da instabilidade das ruas.
Não é a toa que todos cariocas identificam imediatamente o que é um tiroteio ou estouro de uma bomba de brincadeira, e logo buscam se abrigar/proteger. Ele decodifica rápido a sensação de insegurança, pois, convive com isso há muito tempo.
Este fato, por conseguinte, não o impediu que produzisse e executasse sua vida cultural e social, e não ficasse dependente desta ordem conturbada das ruas. Ao contrário. Em alguns casos, o morador do Rio de Janeiro fez e faz profundas reflexões sobre eles mesmos através de obras no cinema, nas artes plásticas, no teatro, na música etc. Nos anos 1990/2000, os rappers e novos roqueiros introduzem em suas músicas uma cidade dura, segregada e excludente.
Hoje, uma das grandes sensações de insegurança na cidade é a bala perdida. Mesmo nesta operação considerada muito técnica feita por policiais estaduais e federais, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, em fins de novembro passado, uma garotinha de 14 anos morreu vítima de uma bala perdida quando em casa navegava pela internet em seu computador.
Embora, na maioria dos casos, restrita aos bairros proletários, não há um morador de zona sul que não tema a bala perdida. Afinal de contas, nos anos 1990, uma delas matou um ator famoso quando este dormia em sua casa em Ipanema, próxima das favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho.
Diríamos que, no Rio de Janeiro, há um medo secular: a descida dos favelados dos morros para tomar a cidade. Esse temor, neste caso, segundo historiadores, provoca estratégias de controle social extremado das comunidades pobres, e é alimento para o surgimento de milícias e dos grupos de extermínio.
Na contemporaneidade, em várias ocasiões, as Forças Armadas foram chamadas para conter a criminalidade na cidade no Rio, sendo as mais famosas as “Operações Rio I e II”, em meados anos 1990.
Em 1849, a população negra na cidade do Rio de Janeiro superava a de brancos devido à busca constante de braços africanos para dar conta das atividades rurais e urbanas. Quem visitava o Rio tinha impressão que estava na África como as aquarelas de Debret querem nos assegurar.
Assim, o temor de uma rebelião escrava no Rio de Janeiro abalou a mente das elites brasileiras. Afinal, em algumas áreas, hoje, por exemplo, convivíamos (ou convivemos ainda?) com o fato de narcotráfico sempre ordenar o fechamento da zona comercial em respeito ao líder do bando morto geralmente pela polícia ou pela guerra entre bandidos pelo controle dos pontos de venda de drogas.
Como o Rio de Janeiro é também uma cidade dionisíaca, então o perigo/aventura faz parte do jogo de viver nas ruas e becos, além do mais, com o agravante que, aqui, os bairros populares e ricos costumam a serem próximos ou vizinhos.
Trata-se, assim, de uma insuportável leveza de viver “o medo” e o “ outro”.

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